A inteligência e a estupidez humanas têm sido temas centrais da reflexão filosófica, psicológica e cultural ao longo dos séculos. Embora geralmente se considerem como opostos, a sua relação é, na verdade, complexa, ambígua e muitas vezes entrelaçada.
Os mais recentes desenvolvimentos na cena política internacional, as alterações sociais fortemente marcadas pelas inovações tecnológicas disruptivas e causadoras de crise nos normativos estruturantes das comunidades, obrigam-nos a rever estes conceitos à luz do nosso mais fundamental interesse: sobreviver.
Este pequeno texto propõe uma síntese das principais teorias contemporâneas sobre o tema, destacando autores como Carlo M. Cipolla, Dietrich Bonhoeffer, Vítor J. Rodrigues, Matthijs van Boxsel e José Antonio Marina, e incorporando reflexões clássicas de pensadores como Platão, Kant, Schopenhauer e Hannah Arendt.
1. A estupidez como força histórica: Carlo M. Cipolla
No seu ensaio “As Leis Fundamentais da Estupidez Humana” (1988), o historiador italiano Carlo M. Cipolla propõe uma abordagem quase matemática para a compreensão da estupidez.
A sua terceira lei define a pessoa estúpida como aquela que causa prejuízo a outrem sem obter qualquer ganho, e podendo até sofrer perdas.
Cipolla destaca ainda que os estúpidos são mais perigosos que os mal-intencionados, porque são imprevisíveis e resistentes à lógica.
Dividindo os indivíduos em quatro categorias — inteligentes, vigaristas, incautos e estúpidos — Cipolla mostra que a estupidez não se correlaciona com classe, profissão ou grau de instrução, estando igualmente distribuída na população. Essa universalidade torna-a um fenómeno estrutural e persistente nas sociedades humanas.
2. A estupidez como problema ético e político: Dietrich Bonhoeffer
Durante a Segunda Guerra Mundial, o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer escreveu, da prisão, uma breve e poderosa análise sobre a estupidez humana. Considerava-a um inimigo mais perigoso que a maldade, pois, enquanto o mal pode ser denunciado, compreendido e combatido, a estupidez é imune à argumentação racional.
Para Bonhoeffer, não se trata de uma falha cognitiva, mas de um defeito moral e social, que se manifesta em contextos de conformismo e obediência cega, especialmente sob regimes totalitários.
A sua análise antecipa em parte o conceito de “banalidade do mal” proposto por Hannah Arendt ao descrever o comportamento de Adolf Eichmann. Ambos vêm a estupidez como cumplicidade acrítica e desprovida de reflexão, facilitadora de atrocidades em massa.
3. A psicologia da estupidez: Vítor J. Rodrigues
No livro “Teoria Geral da Estupidez Humana”, o psicólogo português Vítor J. Rodrigues oferece uma leitura psicológica do fenómeno. Para Rodrigues, a estupidez é mais do que a ausência de inteligência: é uma forma ativa de resistência à adaptação inteligente. Trata-se de uma atitude de fechamento, de rejeição da reflexão crítica e do autoquestionamento.
Rodrigues argumenta que muitas pessoas ditas inteligentes fracassam nas suas interações sociais por não conseguirem lidar com a irracionalidade do outro. Assim, a estupidez é também um problema relacional e adaptativo, e não apenas uma questão de QI.
4. A cultura da estupidez: Matthijs van Boxsel
Na “Enciclopédia da Estupidez”, o históriador holandês Matthijs van Boxsel explora a presença da estupidez em todas as dimensões da civilização humana. A sua tese central é que ninguém é suficientemente inteligente para compreender a própria estupidez.
Segundo van Boxsel, a estupidez é uma força criadora e destruidora, simultaneamente motor e obstáculo da cultura.
Ele recolhe exemplos históricos e anedóticos para demonstrar que a estupidez não é exceção, mas regra. Ao contrário do que supomos, não se trata de uma falha anormal, mas de uma expressão comum da condição humana, através da qual a sociedade se constrói e se destrói continuamente.
5. A inteligência como projeto: José Antonio Marina
José Antonio Marina, filósofo e pedagogo espanhol, dedica a sua obra à inteligência, não como dado natural, mas como projeto existencial.
Na “Teoria da Inteligência Criadora” (1993), distingue entre inteligência generativa (capacidade de criar ideias e emoções) e inteligência executiva (capacidade de decidir e agir).
A inteligência, para Marina, não é apenas eficiência cognitiva: é uma ferramenta para construir a liberdade e a felicidade.
No livro “A Inteligência Fracassada” (2004), Marina mostra que pessoas inteligentes muitas vezes tomam decisões erradas devido a fracassos da vontade, emoções descontroladas ou metas equivocadas.
Assim, o autor entende que a estupidez surge não da falta de razão, mas da ausência de regulação moral e emocional. Propõe uma “vacina contra a estupidez”: um programa educativo que desenvolva pensamento crítico, empatia e autonomia.
6. Raízes Filosóficas: Platão, Kant, Schopenhauer e Arendt
Platão já advertia contra a doxa (opinião) como obstáculo ao conhecimento verdadeiro (episteme). Para ele, a estupidez decorre do apego às aparências e da falta de exercício filosófico.
Kant, por seu lado, defendia o “esclarecimento” como saída da menoridade autoimposta, ou seja, da incapacidade de usar o próprio entendimento sem a direção de outro.
Schopenhauer via a estupidez como parte inevitável da existência, dado o predomínio da vontade sobre a razão.
Hannah Arendt, por fim, na sua análise do totalitarismo, mostrou como a banalidade do mal é alimentada por pessoas que não pensam, que renunciam à capacidade de julgar.
Em todos estes pensadores, encontramos o mesmo alerta: a estupidez é menos uma falta de intelecto do que uma falência do espírito.
Conclusão: uma inteligência para o Bem
A análise cruzada dos autores mostra que a inteligência e a estupidez não são apenas atributos individuais, mas fenómenos sociais, éticos e culturais.
A estupidez humana é resistente, difusa e muitas vezes invisível. Pode ser cultivada pela ignorância, mas também pelo conformismo, pela desatenção moral e pela submissão acrítica.
Por isso, pensar a inteligência como um projeto é essencial. Tal como defende José Antonio Marina, é urgente educar para a lucidez, a empatia e a liberdade interior. É essa a inteligência que importa: aquela que não apenas sabe, mas escolhe bem; não apenas calcula, mas compreende; não apenas executa, mas julga com responsabilidade.
Frente ao avanço da desinformação, do ruído e da irracionalidade organizada, este é um desafio decisivo para o nosso tempo e para cada um de nós.