O óbvio não existe

Vivemos num mundo que nos ensina a economizar tempo e energia, a reduzir processos complexos a explicações simplistas e a confiar na primeira impressão que temos das coisas. Aquilo que nos parece óbvio é, na maioria das vezes, apenas um reflexo do nosso desejo de simplicidade e eficiência.

Tomamos o óbvio como certo porque o nosso cérebro, treinado para encontrar padrões rápidos e seguros, evita gastar energia a investigar o que parece evidente. Mas o óbvio não existe: existe apenas a percepção limitada, o olhar raso sobre a superfície das coisas.

O que nos parece evidente não o é porque tudo tem camadas, e a simplicidade aparente esconde sempre um substrato mais denso, mais rico e mais complexo. Como diria Albert Einstein, “a coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério. É a fonte de toda a verdadeira arte e de toda a verdadeira ciência”.

No entanto, a nossa tendência para a superficialidade faz-nos rejeitar o mistério, aceitando sem questionar aquilo que se apresenta como imediatamente compreensível.

Há muitas forças sociais, pessoas e organizações, que exploram a ilusão do óbvio, a preguiça cognitiva que nos impede de ver além da primeira camada e a recompensa intelectual e emocional de mergulhar na complexidade do mundo.

Equívoco da evidência imediata

Desde cedo somos treinados para confiar nos nossos sentidos e naquilo que nos parece evidente. No entanto, a história da ciência e da filosofia está repleta de casos em que a verdade se revelou precisamente contrária ao que parecia óbvio.

Durante séculos, por exemplo, era óbvio para a maioria das pessoas que o Sol girava em torno da Terra. Foi preciso um olhar mais profundo e uma abordagem crítica para que Copérnico e Galileu revelassem que a realidade era muito diferente.

Arthur Schopenhauer afirmou que “toda a verdade passa por três estágios: primeiro, é ridicularizada; depois, é violentamente rejeitada; por fim, é aceite como evidência”. O óbvio muitas vezes é apenas uma ilusão coletiva, uma crença que nos protege do desconforto da incerteza.

A ilusão do óbvio também se estende às relações humanas. É fácil acreditar que conhecemos bem as pessoas que nos rodeiam, que compreendemos as suas intenções e sentimentos com base nas suas palavras ou atitudes mais superficiais. Mas quantas vezes o que nos parece um gesto trivial esconde camadas de emoções e intenções mais profundas?

Como observou Fernando Pessoa, “não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Somos todos mais do que aquilo que mostramos à flor da água.

Cérebro preguiçoso: uma armadilha cognitiva

A tendência para reduzir a complexidade àquilo que nos parece óbvio é uma estratégia evolutiva do nosso cérebro. Daniel Kahneman, no seu livro Thinking, Fast and Slow, descreve dois sistemas de pensamento:

  • O Sistema 1, que é rápido, intuitivo e eficiente, mas frequentemente enganador.
  • O Sistema 2, que é mais lento, analítico e exigente, mas capaz de revelar verdades mais profundas.

O problema é que o nosso cérebro está desenhado para poupar energia, favorecendo o Sistema 1 e empurrando-nos para conclusões apressadas. Se algo parece fácil de entender, aceitamos essa compreensão superficial em vez de investigar mais a fundo.

Esta realidade do cérebro humano explica por que tantas ideias preconcebidas são tão difíceis de erradicar. Se a primeira impressão for que uma determinada cultura, pessoa ou fenómeno social tem certas características, a maioria das pessoas não sentirá necessidade de questionar essa percepção.

O resultado deste processo de aquisição do real pelo cérebro humano é um mundo onde os estereótipos são perpetuados, a ciência é desacreditada e a sabedoria se perde na velocidade da opinião imediata.

Recompensa do olhar profundo

Ao mesmo tempo que o óbvio nos oferece conforto, a sua recusa pode ser uma fonte de prazer intelectual e emocional. Quando nos libertamos do julgamento rápido e nos permitimos questionar, descobrimos que o mundo é infinitamente mais interessante do que parecia.

O prazer da descoberta, da compreensão e da aventura intelectual nasce precisamente desse desejo de ir além do que é imediato.

Muitos dos grandes cientistas e pensadores foram movidos pelo impulso de questionar o que parecia evidente. Richard Feynman, físico e Nobel da Física, dizia que “a primeira coisa que precisamos aprender é que não devemos enganar a nós mesmos, e nós somos as pessoas mais fáceis de enganar”.

Na arte e na literatura, também vemos esse princípio em ação. James Joyce, com Ulisses, rejeitou a narrativa linear e explodiu a aparente simplicidade do real. Picasso desafiou a noção de que a arte deveria imitar o visível, criando imagens que revelavam novas camadas de percepção. A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen revela que a beleza do mundo está no detalhe, nas sombras, no que não se vê imediatamente.

Desafio de ver além

Obviamente que o óbvio não existe, porque tudo o que tomamos como garantido pode ser explorado de forma mais profunda, revelando perspetivas insuspeitas e formas mais desconcertantes de nos interessar e nos enriquecer.

A tendência para simplificar é um mecanismo do nosso cérebro focado nas necessidades da sobrevivência, mas também pode transformar-se num sério obstáculo ao crescimento intelectual e à compreensão real do mundo.

A progressiva aceleração dos processos de comunicação social, a instantaneidade das partilhas de conteúdo pessoal, a extrema multiplicação dos terabytes de dados dirigidos à nossa atenção, deixa pouquíssima margem de tempo para questionar o que parece evidente e abrirmos portas para novas ideias, novas formas de ver e novas maneiras de sentir.

Por isso, o maior desafio individual da nossa era é manter a curiosidade desperta, aceitar que nada é tão simples quanto parece e abraçar a complexidade com prazer e entusiasmo. Ou como diria Sócrates, proceder sempre com base no  “tudo o que sei é que nada sei”, porque talvez a verdadeira sabedoria esteja justamente na percepção de que o óbvio é uma ilusão e que o real está sempre à espera de ser desvendado.

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