Vamos continuar a dormitar?

Tenho conhecido pessoas com o estranho hábito de fechar os olhos quando não querem ver a realidade ou quando presumem que não vão gostar do que os olhos poderão revelar-lhes.

Trata-se, geralmente, de criaturas que convivem mal com o real e que têm uma irreprimível pulsão sonhadora, uma preferência inata pela insustentável leveza do ser, sem responsabilidades nem cuidados.

Conviver com pessoas desta natureza provoca-me arrepios de medo, porque sei que não posso contar nem com o seu juízo crítico nem com a sua ação decidida, ou seja, tenho de cuidar de mim e delas se não quiser desgraçar-me.

Vem isto a propósito da chamada guerra da Ucrânia, que a cada dia se transforma progressivamente na guerra europeia com perímetro instável e um potencial de risco catastrófico cada vez mais real e próximo de nós.

Basta abrir os olhos para perceber que Putin está a desenvolver um plano longamente pensado, que não é homem para assustar-se com os seus próprios mortos e que julga ter meios bélicos de valor especial, que lhe dão uma superioridade militar que manterá submetidos os vizinhos e seus auxiliadores.

Lendo a imprensa internacional de referência, que usa fontes primárias e dança menos em cima da trivial música do dia a dia, percebe-se que a decisão bélica de Putin está diretamente ligada ao poder destrutivo dos seus mísseis hipersónicos, para os quais não haverá de momento contramedidas eficazes.

A confirmar-se que os americanos não possuem remédio adequado para esta arma russa, a situação será de vantagem significativa para Putin, que evidentemente sabe que tal vantagem é temporária e, como tal, só tem valor se for usada.

Adicionalmente, há outro fator crítico que empurra Putin para esta ação de conquista militar e está relacionado com o afastamento de Merkel e a inevitável recriação de um poder militar significativo na Alemanha.

É cada vez mais evidente que Merkel foi um elemento central da estratégia russa de reforço silencioso do seu poder militar. Ainda haveremos de descobrir que, na boa tradição soviética em que os dois se formaram – do mesmo lado da barricada – Putin foi um tradicional “controleiro” de Merkel, usando a chanceler alemã para construir uma cortina de respeitabilidade e integração económica com a União Europeia que lhe permitiu acumular os meios para se rearmar e ganhar tempo para reorganizar as forças armadas.

A saída de cena de Merkel deixou a nu os riscos estruturais desta relação tóxica da Alemanha com a Rússia, designadamente por causa da dependência energética mas, sobretudo, por colocarem em risco as alianças tradicionais com os Estados Unidos e o Bloco Ocidental, como se vê claramente no consulado de Trump, quando este brutalmente afirma que se os alemães querem proteção militar então têm de pagar aos EUA em vez de pagarem à Rússia.

Neste quadro de condições e objetivos é evidente que a guerra vai continuar e vai alargar-se mais rapidamente do esperamos a outras geografias europeias e provavelmente ainda este ano teremos a Nato-Europa metida formalmente ao barulho.

Há incógnitas e cartas ainda fora do baralho – China, Japão, Índia, Turquia – mas é evidente que Portugal deveria estar a preparar-se rápida e decididamente para um cenário de guerra declarada, corrigindo enquanto pode as inconsistências e as fragilidades de um aparelho militar que foi reduzido a quase uma formalidade de paradas e cerimónias.

Persistir num caminho de ingenuidade ou de inconsciência apenas porque não queremos ver a realidade vai custar-nos um preço brutal no momento H.

Como se tem visto na Ucrânia, a salvação da Europa face à Rússia tem de depender essencialmente dos países que geograficamente são europeus, porque os Estados Unidos estão num caminho que pode acabar mal.

Esta ideia que se generalizou de que só a América tem a economia necessária para sustentar uma guerra, só a América domina os circuitos de informação para saber antecipar os movimentos dos opositores e só a América tem o treino de combate em teatros reais para suportar a morte como preço da resistência à tirania é uma ideia perigosa, desde logo para os americanos. Porque quanto toca ao “mata mata”, já se viu que nem tudo o que parecia certo se confirma.

O resto – que é muitíssimo – é conversa fiada e palavreado estúpido debitado nas televisões como espetáculo barato gerador de audiências acomodadas por uma aparente e, portanto, falsa, invulnerabilidade.

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