Sendo a nossa vida limitada em tempo e marcada pela responsabilidade de nos mantermos vivos até ao limite da possibilidade física, acabamos por usar o tempo de forma pouco livre, porque o tempo é o recurso que mais empenhamos no processo de sobrevivermos.
Para o comum indivíduo socializado na obrigação do trabalho e na honra de o ter é mais que certo haver um tempo máximo exigido pelo esforço acumulativo de merecimentos vários que cria o impossível tempo livre.
E sem tempo livre não há liberdade, porque a liberdade sem o seu tempo não é liberdade, é medo – medo de perder tempo.
Temos pois – os comuns indivíduos que fabricam dias úteis – um dilema vivo de tempos comprometidos e tempos livres.
O tempo comprometido não é livre porque o compromisso não é voluntário, apesar de poder ser transformado em aquiescência ou gosto o modo como usamos e vivemos esse tempo.
A moderna e urbana organização das vidas transformou em trabalho quase todos os compromissos sociais, porque nos exige utilidade de uso, mesmo quando supostamente servem os afetos.
A vastidão dos deveres e das modas estabelecem padrões de ação que provocam uma usura terrível do tempo que poderia sobrar para ser livre. E sem tempo que possamos proteger desta usura provocada pelos deveres, temos uma completa submissão à utilidade que nos pesa como canga em pescoço de escravo.
Ainda que do ponto de vista físico pudéssemos cuidar de resistir, equilibrando obrigações e capacidades dentro da mesma unidade de tempo útil, já no plano espiritual é muito mais difícil criar o silêncio que compensa ou anula os danos provocados pela algazarra permanente do trabalho e da sociabilidade por ele requerida.
O silêncio é um bem que só medra com o tempo necessário, porque o silêncio é tempo.
Se não temos tempo para o silêncio é porque não temos tempo para ouvir o Mundo sem o utilitarismo da conversa habitual e isso é uma condenação sem alforria.
A necessidade de silêncio é, pois, equivalente às exigências de tempo livre, porque só pela sua afetação ao silêncio conquistamos uma quota de liberdade verdadeira e ajustada à utilidade imposta no tempo que damos ao Mundo.
É neste contexto que os fins de semana e as férias podem constituir a maior invenção civilizacional da modernidade, ensaiando a devolução de um tempo íntimo aos espoliados pelo utilitarismo dos dias.
Ao libertar tempo do trabalho, devolvendo ao indivíduo a soberania sobre parte do seu tempo utilizável, percorre-se o inverso trilho dos dias, abrindo uma janela para o Universo, criando um potencial de espiritualização do tempo que nos pode transportar ao maravilhoso primitivo, àquele silêncio primordial, àquele tempo livre cuja memória ainda resiste nas mitocôndrias de homens e mulheres como interrogação essencial sobre o que somos e o que fazemos neste Mundo.
Esse tempo de silêncio primordial habita-nos quando nascemos e está em nós antes de o conseguirmos perceber e domar pela configuração utilitária do trabalho e da algazarra social no resto das nossas vidas.
Com alguns grãos deste tempo/silêncio talvez possam inventar-se humanos diferentes, criaturas necessárias antes de serem úteis, e livres mesmo depois de comprometidos com o Mundo.